Tinhas cinco anos. Nos dias de chuva saias sozinho
para brincar no quintal, no beco, e tua mãe se preocupava com doenças: tifo,
febre amarela, papeira... Jano temia outras coisas. Numa manhã de aguaceiro,
Macau te encontrou perto da Legião Brasileira de Assistência brincando com uns meninos
pobres das palafitas do centro. “Mundo só se dá com caboquinhos”, teu pai dizia
a Alícia. “As crianças da vizinhança são filhos de casais distintos, mas ele só
procura os selvagens.” Tua mãe quis te aproximar dos garotos das redondezas do
palacete, filhos de grandes comerciantes e magistrados. Foi um desastre. Tu
ficavas ensimesmado numa redoma de mau humor e mutismo, desprezando aviões
metálicos, ursos que tocavam tambor, carrosséis com cavalinhos coloridos e toda
a tralha de brinquedos elétricos adquiridos de um contrabandista conhecido de
Corel. Tua mãe percebeu que tua maior diversão era perambular na chuva e teu
maior prazer era desenhar. E tu querias ficar sozinho para fazer as duas
coisas. Então Jano te proibiu de sair na chuva, te trancava no porão e às vezes
demorava a ir ao trabalho, queria te vigiar e também vigiar tua mãe, que te
libertava logo que ele saía. Ela dizia a Jano que não havia problema em brincar
na rua em dias chuvosos, as crianças adoravam, mas Jano não a ouvia: durante os
meses de inverno daquele ano mandava um funcionário ao palacete para ver se
ainda estavas no porão, e tua mãe o expulsava aos berros: “Diz pro teu patrão
que meu filho não é um bicho”; então ele mesmo, Jano,voltava pra te vigiar, e,
enquanto teus pais discutiam, tu fugias, e tua mãe cachinava de tanto nervosismo,
e o idiota do Jano pensava que ela fazia pouco dele. Aí Macau ia atrás de ti, e
teu pai te confinava de novo no porão. Perguntavas a tua mãe por que tudo era
tão escuro e por que agora só escutavas o barulho da chuva e das trovoadas, e
por que tinhas que comer sozinho e só podias sair à noite pra ir dormir no
quarto, e ela, tua mãe, não sabia o que dizer. Eu quis peitar teu pai, mas
Alícia disse: “Não, seria o fim, o cúmulo”, e um dia tu desenhaste o rosto de
uma criança gritando, e quando vi o desenho, disse pra tua mãe: “Mundo vai ser
um artista, pode esquecer todas as outras profissões”, e ela não entendeu ou
pensou que era uma opinião absurda demais pra ser considerada. Foi em janeiro
de 1958. Antes de sair para o escritório, teu pai ordenou que Macau e Naiá te
vigiassem. Ele voltou pra almoçar e te chamou para comer à mesa; durante o almoço
tu lhe mostraste os desenhos, e teu pai, sem olhar para as folhas de papel nem
para o teu rosto, perguntou: “É só isso que ele sabe fazer?” E tua mãe: “É uma
criança, gosta de desenhar, ele brinca e desenha sozinho no porão”. Então teus
pais começaram a discutir, e no meio da gritaria tu choraste e correste para o
porão, e tua mãe foi atrás de ti, e Jano disse: “Deixa o menino lá embaixo, ele
já se acostumou, agora aprendeu que não deve brincar com malandros na chuva”. E
naquele mesmo dia — era um fim de tarde, o céu escuro e fechado, e ainda
chuviscava — eu tomava sopa no restaurante do Luso, quando vi um táxi parado na
rua e o rosto molhado da tua mãe na janela. Larguei a colher, fui até o carro e
ouvi. “Mundo quebrou a janela do porão e fugiu”. Ela já tinha visitado a
vizinhança e rodado pelo centro, e nada. Volta pra tua casa, vou atrás de Mundo,
eu disse. Saí do Luso para o porto e dei uma volta nos arredores do palacete de
Jano: um menino de cinco anos não podia estar muito longe de sua casa. E aí
voltei para o porto, passando pelas mesmas praças, mas por outras ruas. O
relógio da matriz marcava sete horas. Teu pai já devia estar em casa, e eu
lembrei das lojas de brinquedos; ao cruzar a Marechal Deodoro, vi uma roda de
homens e mulheres e pensei: algum vendedor ambulante, um bêbado arriado ou um
acidente. Perguntei o que estava acontecendo, um homem disse: “Um menino
perdido... diz que quer mostrar os desenhos para o pai”. Tu choravas no meio da
roda e seguravas uma folha de papel, e um talho na tua mão direita ainda
sangrava, e manchava o papel. Eu te carreguei até a avenida Eduardo Ribeiro, e
fomos de táxi pra tua casa, e continuaste a chorar, querendo mostrar os
desenhos ao teu pai, e eu tentava estancar o sangue com a minha camisa; na
porta do palacete eu pedi que o motorista te acompanhasse até a sala. Se eu
visse teu pai naquela noite, seria capaz de matá-lo. Tinha medo que ele te
batesse ou fizesse coisa pior, mas Alícia me contou que Janoaprovara tua
ousadia e começara a dizer que o herdeiro já era um rapazinho corajoso, e, ao
ver o ferimento na tua mão e a folha de papel molhada de sangue, repetira
várias vezes. “Um menino corajoso, nem chorou”. Aí eu disse a Alícia: “Esse
louco vai matar teu filho”, e isso ela entendeu, ficou preocupada. Sabia que a
doença do marido não era apenas um mal do corpo. Se fosse, tua mãe não teria
começado a beber e jogar. Antes era apenas um passatempo, depois ela passou a jogar
com o prazer, a gula e a paixão de uma viciada, ganhando e perdendo, e quando
ganhava um pouco mais, ela me dava uma parte do dinheiro e dizia. “Ajuda o
Lavo, compra livros e roupa para o filho da minha finada amiga”. Bebendo,
ganhando, perdendo... e teu pai aturando tudo porque era embeiçado por ela, mas
já temia que o filho se desviasse do destino de herdeiro. Porque depois do
castigo no porão ele te obrigou a ir uma vez por semana, à tarde, ao escritório
da Marechal Deodoro, de onde só voltavas no fim do expediente. Em casa, Jano
dizia a Alícia que mostrara ao filho faturas, promissórias e contratos, e
falara sobre a produção da juta, e tua mãe argumentava que nada disso te
interessava e que tu não tinhas idade para entender essas coisas, e ele dizia:
“Aos dez anos comecei a trabalhar com meu pai”. E na tarde em que ela entrou no
escritório, tu estavas na cadeira do Mattosão, pálido, e quieto como um boneco;
Alícia perguntou ao gerente onde estava Jano, e o gerente disse: “Saiu para
vacinar um cachorrinho que ele encontrou hoje de manhã”, e ela quis saber o que
tu fazias ali sentado, e o gerente disse: “Está de castigo porque ficou o tempo
todo desenhando e rasgou um bloco de nota fiscal”. Ela te levou pra casa, pediu
a Naiá que ficasse contigo, e eu soube de tudo isto uns três dias depois: ela,
tua mãe, se trancou no porão e começou a beber, e só à tardinha Macau arrombou
a porta e a encontrou desmaiada ao lado de uma poça de vômito; levou-a ao
hospital, para onde Jano se dirigiu às pressas e, ao vê-la tomando soro, disse:
“É castigo: nunca foste à missa, nem quiseste batizar nosso filho...”. Lá,
diante de tua mãe, um amigo dele, um tal de Palha, o aconselhou a não te castigar,
e Jano argumentou que tu passavas o dia desenhando, e o amigo disse. “Deixa a
criança desenhar, um dia ele vai se interessar por outra coisa”. E foi esse
Palha que sugeriu a teu pai que comprasse um apartamento no Rio e passasse as
férias com a família, e Jano fez isso. Mas ele foi apenas uma vez para o Rio,
não quis mais ir. Antes das férias de fim de ano ele dizia: “Primeiro vamos à
Vila Amazônia, depois vocês viajam para o Rio”, e essas temporadas na
propriedade eram uma tortura para tua mãe. Nessa época — tu tinhas uns nove
anos —, lembro que saímos juntos pela primeira vez, e tu me olhaste desconfiado
durante o passeio de barco até a ilha do Camaleão. Depois eu te apanhava na
porta do grupo escolar, e íamos ao Manaus Harbour e nadávamos na piscina do
Hilary, o navio da Booth Line que fazia uma de suas últimas viagens ao Amazonas.
Tua mãe me dava dinheiro, e eu comprava caixas de lápis e tubos de tinta suíços
e ingleses para ti. Eu te incentivei a ser artista e fazer caricaturas que
causaram constrangimento e vergonha a teu pai. Eu dizia para Alícia que tu
serias um artista e não um sucessor da Vila Amazônia, ela às vezes te apoiava,
mas outras vezes era pressionada por Jano, que interferia na tua vida. Ela
mesma me disse que o marido a ameaçava só com o olhar... A maior ameaça era a perda
da herança, e o medo de Alícia foi crescendo com o tempo. Nosso grande
desacordo foi o teu ingresso no Colégio Militar. Eu não queria te ver no
internato, mas tua mãe disse que era só uma artimanha para satisfazer teu pai,
e assim ela cedeu mais uma vez à chantagem de Jano. Mas não abri mão da
execução do Campo de cruzes.
(HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. — São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 251-255.)
Comentários
Postar um comentário