Solidão -> Iluminação
"Sim,
a solidão pode ser iluminadora. No deserto, Jesus, Abraão e Maomé encontraram
sua vocação e seu chamado. Não estavam sozinhos. Jesus encontrou o demônio e
anjos. O fundador dos Islamismo recebeu a revelação por meio de Gabriel. Como
veremos no livro, Deus se revela a solitários ou fala de forma inaudível para
os outros, fala individualmente, como no episódio da queda de Saulo a caminho
de Damasco. A solidão pode ser criativa como para GH. Pode ser representada
como foco do gênio: assim o romântico Delacroix pinta outro criador,
Michelângelo, imerso na solidão do seu estúdio. Isolado, o profeta ou o artista
se ilumina ou se comunica com planos superiores. A algaravia do mundo atrapalha
a recepção do sagrado, como vemos na parábola do semeador (Mt 13). As
preocupações do mundo são espinhos, e a Palavra não frutifica."
"(...) ou a própria solidão é a condição da existência da cultura formal de estudo? A vida é elaborada mais densamente pelo exercício da solidão ou só nos dedicamos à reflexão quando não dispomos de verdadeira e orgânica companhia?
(...)
Dito de forma mais existencialista e psicanalítica, se o inferno está nos outros, o medo da solidão seria a opção para evitar o pior de todos os sofrimentos, nós mesmos?
Aristóteles garantiu que a solidão criava deuses e bestas. O filósofo queria dizer que muita da criação humana deriva da experiência do isolamento interno ou externo."
(KARNAL, Leandro. O Dilema do porco-espinho: como encarar a solidão. – São Paulo : Planeta do Brasil, 2018)
"Nosso mal está em nossa alma; ora, ela não pode escapar de si mesma. Assim, é preciso trazê-la de volta e refugiá-la em si: essa é a verdadeira solidão, e que pode ser desfrutada no meio das cidades e das cortes dos reis; mas a desfrutamos mais convenientemente à parte. Ora, já que decidimos viver sós e dispensar companhia, façamos com que nosso contentamento dependa de nós: libertemo-nos de todos os laços que nos prendem aos outros, conquistemos de nós mesmos o poder de viver sós, em conhecimento de causa, e assim vivermos a nosso gosto.
(...)
o homem de bom entendimento nada perdeu se tiver a si mesmo. Quando a cidade de Nola foi destruída pelos bárbaros, Paulino, que era seu bispo, tendo tudo perdido e sendo prisioneiro deles, rezava assim a Deus: “Livrai-me, Senhor, de sentir essa perda, pois sabeis que eles ainda não tocaram em nada do que é meu”. As riquezas que o faziam rico e os bens que o tornavam bom ainda estavam por inteiro. Eis o que é escolher direito os tesouros que podem escapar do estrago e escondê-los em lugar aonde ninguém vá e que só possa ser revelado por nós mesmos.
(...)
É preciso reservar um canto todo nosso, todo livre, e lá estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso principal retiro e solidão. Aí devemos praticar nossa conversa habitual, de nós para nós mesmos, e tão privada que nenhum convívio ou comunicação com as coisas externas encontre espaço: discorrer e rir, como se sem mulher, sem filhos e sem bens, sem séquito, sem criados, a fim de que, quando chegar o momento de sua perda, não nos seja novidade dispensá-los."
(MONTAIGNE, Michel. Ensaios)
Comentários
Postar um comentário