LEI 13.004, DE 24.06.2014: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA POPULAR" OU "AÇÃO POPULAR CIVIL PÚBLICA"? (JOSÉ MARCELO MENEZES VIGLIAR)

LEI 13.004, DE 24.06.2014: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA POPULAR" OU "AÇÃO POPULAR CIVIL PÚBLICA"?
JOSÉ MARCELO MENEZES VIGLIAR

Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorando pela Universidade de Lisboa.

Poeticamente, William Shakespeare daria um título mais adequado e mais desafiador quando questionou se outro perfume teria a rosa e este nome não tivesse (What’s in a name! That which we call a rose by any another name would smell as sweet), caso estivesse confrontando a enorme “oferta de ações” predispostas para a tutela do mesmo interesse. Simplifiquemos: qual o nome da ação? Aliás, ação tem nome? A pergunta é antiga. Não a enfrentarei, os Professores Cândido Rangel Dinamarco e Flavio Yarshell, entre outros, a enfrentaram com maestria. Mas o legislador continua o mesmo. Vai derrogando leis, criando outras tantas e, assim, vamos nos enredando em diversos diplomas que, se não atentos, são capazes de colocar em dúvida algumas convicções que decorrem da lógica processual.
Vamos ao tema central.
Uma simetria não pode deixar de ser notada na aproximação dos objetos da ação popular constitucional (art. 5.º, LXXIII, da CF) e da ação civil pública, derrogada pela Lei 13.004/2014 [Altera os arts. 1o, 4o e 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, para incluir, entre as finalidades da ação civil pública, a proteção do patrimônio público e social.]
Manteve a Constituição Federal de 1988 a ação popular, ampliando seu objeto, se comparado com o da Lei 4.717/1965. Para as presentes considerações interessam, na parte em que seu objeto foi mantido: (a) a defesa do patrimônio público; (b) a legitimação do autor popular, titular de deveres e direitos políticos que representa a sociedade. Individualmente, autores populares (cidadãos), de forma isolada, vem realizando a defesa do possível, mediante o ajuizamento da ação popular.
A defesa do patrimônio público, ao contrário, nunca esteve ao encargo da sociedade, se utilizada a Lei 7.347/1985. Aqui, pretendo fazer a única referência possível: a sociedade organizada em associação; a associação civil como uma das representantes adequadas das sociedades. Até o advento da lei derrogadora (Lei 13.004/2014), o objeto de atuação da associação deveria constar, claramente, de seus estatutos. Estes haveriam de ser registrados na forma da lei civil que, igualmente, apresenta os parâmetros para a sua constituição. Mas não se cogitava da formação de uma associação civil cujos objetivos fossem, em juízo, realizar a tutela do patrimônio público.
TÍPICO INTERESSE INTEGRANTE DA CATEGORIA DOS INTERESSES DIFUSOS (INDIVISÍVEL; TITULARIDADE PERTENCENTE A PESSOAS INIDENTIFICÁVEIS; UNIÃO DESSES MESMOS INFINITOS INTERESSADOS POR MERAS CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS), O PATRIMÔNIO PÚBLICO VINHA SENDO DEFENDIDO PELO REPRESENTANTE ADEQUADO QUE DETÉM ESSA FUNÇÃO INSCRITA NA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, OU SEJA, O MINISTÉRIO PÚBLICO (ART. 127, C/C O SEU ART. 129).
Verdade que a Constituição deixa absolutamente claro que a legitimidade do Ministério Público não exclui a de outros. Fato. Aliás, de forma bem residual, o cidadão maneja a ação popular para a tutela do erário. Mas, o mau emprego da ação popular, utilizada em diversas oportunidades como meio de perseguição política, fez com que esse importante remédio constitucional, de defesa de interesses igualmente resguardados pela Constituição Federal fosse, por assim dizer, “mal visto” pelo Judiciário.
O cidadão passou, principalmente na década de 1990 do século passado a optar pela representação. Ao invés de ajuizar a demanda coletiva, denominada ação popular, coletava alguns dados e enviava a notícia do descaso com o erário (superfaturamentos, licitações dirigidas, desperdícios de toda ordem etc.) ao Ministério Público.
Abramos um pequeno parêntese para uma breve justificação que, creio, esteja para lá de superada, exceto se algum desavisado ainda não tenha percebido. O que faz de uma demanda coletiva, não é o nome que o legislador a confere. Nunca foi e, há que se considerar que os nomes dados pelas assessorias parlamentares nem sempre seguem a essência jurídica que deve ser preservada. A INICIATIVA POR UM REPRESENTANTE ADEQUADO DA SOCIEDADE, OU SEJA, AQUELE QUE, EM RELAÇÃO AO QUE, NO CASO CONCRETO É DEFENDIDO, E SUA RAZÃO DE EXISTÊNCIA, OU SEJA, O MOTIVO PELO QUAL ESSE REPRESENTANTE EXISTE, CONSTITUI UMA DAS CARACTERÍSTICAS DAS AÇÕES COLETIVAS. Assim, ações populares, civis públicas, civis públicas de combate a atos de improbidade administrativa etc.
A OUTRA NOTA DE DIFERENCIAÇÃO ESTÁ NOS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA MATERIAL. As ações coletivas destinam-se, dada a extensão do próprio dano, a pessoas que não participaram da relação jurídica material. A essa conformação processual (entre início e fim) dá-se o nome de ação coletiva. O processo é coletivo, na verdade.
Voltemos aos anos 1990. O fato é que o Ministério Público foi aprimorando sua atividade. Essa necessidade se deu diante da função institucional a ele absolutamente compatível, vinda com a Lei 8.429/1992. Ajuizar demandas coletivas para a imposição das sanções próprias (previstas no art. 12 da referida lei) pela ofensa à probidade administrativa constitui uma atribuição que o Ministério Público desenvolveu.
Tantas as ações dessa natureza ajuizadas que o E. STJ, na atualidade, já consegue analisar as condutas, classificando-as como se, para sua concretização, necessitam do elemento subjetivo do agente. Agira com dolo? Agira com culpa? A ação de improbidade não implica na imposição de sanção penal. Mas, o denominado “direito administrativo sancionador” posicionou-se, na análise jurídica de sua estrutura, para além do direito comum. Intermedeia a esfera das condutas penais e das condutas não penais, ou meramente patrimoniais.
Se é um fato inquestionável que o autor popular (o cidadão) está absolutamente legitimado a ajuizar ação popular para demonstrar que, por prática de ato de imoralidade administrativa o agente público prejudicou o erário (objetos do inc. LXXIII, do já citado art. 5.º da CF), também o é que está proibido de postular as sanções próprias da improbidade.
O motivo é constitucional. A Constituição Federal de 1988 previu que lei que combateria a improbidade seria editada, preveria as sanções e os legitimados. O cidadão não foi contemplado.
Pense-se no inverso. O cidadão ajuíza ação popular. Narra desvio de verba pública derivada de ato de imoralidade administrativa. Solicita a devolução da quantia ao erário. Perfeito. Perfeito mas incompleto. O Ministério Público intervém nas ações populares. Na leitura da inicial, considerando a causa de pedir que consubstancia os pedidos deduzidos pelo cidadão, verifica que os mesmos constituem condutas ímprobas.
Como age. Na verdade, com cópias da ação popular, haveria de instaurar ação civil pública de improbidade administrativa. Mesmas as partes (ora, as funções processuais do Ministério Público e do cidadão são as mesmas), mesma a causa de pedir. E os pedidos? Ora os pedidos do Ministério Público compreendem os do autor e os excedem (não pede apenas a devolução ao erário do gasto de forma indevida, por exemplo). O Ministério Público pede: suspensão dos direitos políticos do agente público envolvido e a perda da função; pede a aplicação de multa civil; postula a condenação da impossibilidade da empresa beneficiada de contratar com o serviço público.
Note-se o insofismável: os fatos foram e são os mesmos (a causa de pedir). Os pedidos variam. Por quê? Há limites ao cidadão, pois não fora contemplado pela Lei 8.429/1992 como legitimado.
A pergunta deve ser repetida em relação à Lei 13.004/2014.
Sem qualquer neofobismo, concordemos que a ampliação do rol de legitimados sempre é bem vida. Mais. A participação da sociedade organizada, em associação, é excelente. Para demandas cautelares – que evitem os danos e até mesmo venha a intervir em políticas públicas – parece-me sensacional.
Mas, em relação ao prejuízo contabilizado (o desperdício já constatado), a sina da ação seguirá a da ação popular.
Também nas ações civis públicas há a intervenção do Ministério Público. Assim determina a Lei 7.347/1985 (como o faz a Lei 4.717/1965 – Lei da Ação Popular).
AS COIRMÃS DE 50 E 30 ANOS, CONVIVEM COM A LEI DE 1992 (A LEI DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – 8.429/1992). DE POSSIBILIDADES MAIORES, EM DETERMINADOS CASOS CONCRETOS, FAZ COM QUE AÇÕES POPULARES E AÇÕES CIVIS PÚBLICAS CRIEM RELAÇÃO DE CONTIDO E CONTINENTE (QUANDO SE PENSA NA AMPLA POSSIBILIDADE DOS PEDIDOS PRÓPRIOS DA LEI DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA).
Respeitemos aqueles que insistem – sem razão – que não há relação de continência, pois, formalmente (apenas formalmente, pois todos são representantes adequados da sociedade – conceito que não se confunde integralmente com o de legitimidade) os autores são diferentes.
Pois bem. Ainda assim, a conexidade entre essas demandas ocorrerá. O Judiciário ao julgar o objeto da ação civil pública de combate a improbidade administrativa, julgará o objeto menor da ação popular, ou da ação civil pública ajuizada por associação, agora legitimada pela Lei 13.004/2014.
Confuso? Não. Jurídico. Menos até (não em importância), processualmente lógico.
O que não pode ocorrer? Que as demandas sejam julgadas. Separe-se uma causa de pedir envolvendo desperdício de dinheiro público. Conceba uma ação popular. Imagine uma ação civil pública, ajuizada por associação legitimada pela Lei 13.004/2014. Finalmente – e ainda sobre a mesma e exata causa de pedir – uma ação de combate à improbidade administrativa.
Antes das sanções, por óbvio, considerando que estamos diante de três ações de conhecimento, que exigem um processo de conhecimento com cognição plena, haverá um conteúdo declaratório na sentença que julga os pedidos.
A única hipótese impensável: três (3) sentenças. O motivo? Possibilidade de resultados diversos.
Não podemos exigir do legislador que pare de legislar e nem que legisle corretamente e considerando os temas que já estejam legislados. Embora constitua atividade sua, seria aguardar demais.

O Judiciário deverá ficar atento. Ora direis que na hipótese acima criada, que o demandado seria o primeiro a informar os juízos sobre a existência de demandas que guardam relação de continente e contido (ou, vá lá, de conexidade). Mas, como já vimos de tudo e como as sanções de improbidade são severíssimas (presentes os elementos do tipo e o agente público), não custa refletir sobre a possibilidade de processamento simultâneo de demandas com posteriores nulidades, perda de tempo do Estado e, ainda, eventuais rescisórias, ao argumento de que o competente para o julgamento dos pedidos não foi o juiz que poderia exercer a jurisdição no caso concreto.

Vigliar, José Marcelo Menezes. Lei 13.004, de 24.06.2014 : "ação civil pública popular" ou "ação popular civil pública"?. - In: Ação civil pública após 30 anos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2015, p. 477-479.

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