Cinzas do Norte, Milton Hatoum [Se a vida é imitada pela arte, a arte não limita a vida]

Tinhas cinco anos. Nos dias de chuva saias sozinho para brincar no quintal, no beco, e tua mãe se preocupava com doenças: tifo, febre amarela, papeira... Jano temia outras coisas. Numa manhã de aguaceiro, Macau te encontrou perto da Legião Brasileira de Assistência brincando com uns meninos pobres das palafitas do centro. “Mundo só se dá com caboquinhos”, teu pai dizia a Alícia. “As crianças da vizinhança são filhos de casais distintos, mas ele só procura os selvagens.” Tua mãe quis te aproximar dos garotos das redondezas do palacete, filhos de grandes comerciantes e magistrados. Foi um desastre. Tu ficavas ensimesmado numa redoma de mau humor e mutismo, desprezando aviões metálicos, ursos que tocavam tambor, carrosséis com cavalinhos coloridos e toda a tralha de brinquedos elétricos adquiridos de um contrabandista conhecido de Corel. Tua mãe percebeu que tua maior diversão era perambular na chuva e teu maior prazer era desenhar. E tu querias ficar sozinho para fazer as duas coisas. E...